O louco
Perguntais-me como me tornei louco. Aconteceu assim:
Um dia, muito tempo antes de muitos deuses terem nascido, despertei de um sono profundo e notei que todas as minhas máscaras tinham sido roubadas – as sete máscaras que eu havia confeccionado e usado em sete vidas – e corri sem máscara pelas ruas cheias de gente gritando: “Ladrões, ladrões, malditos ladrões!”
Homens e mulheres riram de mim e alguns correram para casa, com medo de mim.
E quando cheguei à praça do mercado, um garoto trepado no telhado de uma casa gritou: “É um louco!”
Olhei para cima, para vê-lo. O sol beijou pela primeira vez minha face nua.
Pela primeira vez, o sol beijava minha face nua, e minha alma inflamou-se de amor pelo sol, e não desejei mais minhas máscaras. E, como num transe, gritei: “Benditos, benditos os ladrões que roubaram minhas máscaras!”
Assim me tornei louco.
E encontrei tanto liberdade como segurança em minha loucura: a liberdade da solidão e a segurança de não ser compreendido, pois aquele que nos compreende escraviza alguma coisa em nós.
A dádiva
E ele respondeu:
“Vós pouco dais quando dais de vossas posses.
É quando dais de vós próprios que realmente dais.
Pois, o que são vossas posses senão coisas que guardais por medo de precisardes delas amanhã?
E amanhã, que trará o amanhã ao cão ultraprudente que enterra ossos na areia movediça enquanto segue os peregrinos para a cidade santa?
E o que é o medo da necessidade senão a própria necessidade?
Não é vosso medo da sede, quando vosso poço está cheio, a sede insaciável?
Há os que dão pouco do muito que possuem, e fazem-no para serem elogiados, e seu desejo secreto desvaloriza suas dádivas.
E há os que têm pouco e dão-no integralmente.
Esses confiam na vida e na generosidade da vida, e seus cofres nunca se esvaziam.
E há os que dão com alegria, e essa alegria é já a sua recompensa.
E há os que dão com pena, e essa pena é o seu batismo.
E há os que dão sem sentir pena nem buscar alegria nem pensar na virtude:
Dão como, no vale, o mirto espalha sua fragrância no espaço.
Pelas mãos de tais pessoas, Deus fala; e através de seus olhos Ele sorri para o mundo.
É belo dar quando solicitado; é mais belo, porém, dar sem ser solicitado, por haver apenas compreendido;
E para os generosos, procurar quem recebe é uma alegria maior ainda que a de dar.
E existe alguma coisa que possais guardar?
Tudo o que possuís será um dia dado.
Dai agora, portanto, para que a época da dádiva seja vossa e não de vossos herdeiros.
Dizeis muitas vezes: “Eu daria, mas somente a quem merece”.
As árvores de vossos pomares não falam assim, nem os rebanhos de vossos pastos.
Dão para continuar a viver, pois reter é perecer.
Certamente, quem é digno de receber seus dias e suas noites é digno de receber de vós tudo o mais.
E quem mereceu beber do oceano da vida, merece encher sua taça em vosso pequeno córrego.
E que mérito maior haverá do que aquele que reside na coragem e na confiança, mais ainda, na caridade de receber?
E quem sois vós para que os homens devam expor o seu íntimo e desnudar seu orgulho a fim de que possais ver seu mérito despido e seu amor-próprio rebaixado?
Procurai ver, primeiro, se mereceis ser doadores e instrumentos do dom.
Pois, na verdade, é a vida que dá à vida, enquanto vós, que vos julgais doadores, são meras testemunhas.
E vós que recebeis – e vós todos recebeis – não assumais encargo de gratidão a fim de não pordes um jugo sobre vós e vossos benfeitores.
Antes, erguei-vos, junto com eles, sobre asas feitas de suas dádivas;
Pois se ficardes demasiadamente preocupados com vossas dívidas, estareis duvidando da generosidade daquele que tem a terra liberal por mãe e Deus por pai.”
Gibran Khalil Gibran nasceu no Líbano no final do século XIX, terra então dominada pelo Império Turco Otomano, há milênios conturbada e há milênios preocupada com o fenômeno filosófico e religioso. Com o crescimento do perigo fascista para a região, lá conhecido como “sionismo”, mudou-se para os EUA, ali radicando-se desde o início do século passado (caramba, somos todos do século passado!) e tornando-se uma das principais referências intelectuais para o conhecimento da alma do povo muçulmano, druso, maronita ou cristão ortodoxo em geral, libaneses em particular.
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